O Big Brother e a visão budista da vida
O Big Brother é um reality show de origem holandesa que faz muito sucesso no Brasil há décadas. O confinamento de pessoas comuns obrigadas a conviver nesta espécie de encarceramento vigiado por câmeras, sem contato nenhum com a realidade exterior à casa, seduz o brasileiro em sua curiosidade de espiar o comportamento humano, a vida alheia, e alimenta o sonho da fama instantânea e ascensão social, gerando a sensação de pertencimento, relevância e dignidade.
Conflitos, discussões, relacionamentos, traições, fofocas e nudez são os temas centrais da atração, que tem a audiência elevada às alturas especialmente quando há brigas e discórdia entre os participantes.
Casos de preconceito, traição, racismo e outras posturas polêmicas e nocivas também chamam muito a atenção do espectador e elevam a audiência. Esse espetáculo de entretenimento é baseado no voyeurismo elevado e exacerbado, que se apoia também na sensação de controle que dá ao público sobre as emoções: gostar ou não de uma pessoa sem nenhuma lógica racional e poder, digamos assim, deletá-la ou excluí-la do convívio, sem ser julgado por isso ou sentir qualquer tipo de culpa. Faz parte da estrutura do fenômeno Big Brother o estímulo das emoções rasas, por vezes um tanto cruéis, refletindo esses aspectos no tipo de entretenimento que apresenta.
O Grande Irmão – a origem do nome do programa Big Brother
O Big Brother teve o nome inspirado no romance distópico de George Orwell, chamado 1984, publicado em 1949. George Orwell (pseudônimo para Eric Arthur Blair) foi um escritor, jornalista e ensaísta político inglês, com uma obra literária marcada por uma consciência profunda das injustiças sociais e posicionamentos políticos muito claros, opostos a qualquer forma de totalitarismo, cerceamento do comportamento, manipulação e dominação ou opressão política.
A obra trata de um mundo de guerra perpétua, onde criou-se uma vigilância governamental onipresente e forte manipulação pública e histórica, onde os habitantes desta sociedade são regidos por um regime político totalitário, controlado por uma seleta elite privilegiada e seu partido centrado na perseguição ao individualismo e a liberdade de expressão, onde o pensamento e qualquer tipo de questionamento ou oposição é um crime supervisionado pela “Polícia do Pensamento” e por milhares de câmeras de vigilância.
O Grande Irmão é, neste romance, um conceito, um personagem tido como fictício e criado para disseminar as ideias do partido. Foi atribuído um rosto, uma figura, que era acompanhada da frase “O Grande Irmão está te observando”, uma máxima utilizada para o controle psico-comportamental de toda a população. Muitas câmeras, informantes e uma polícia muito ativa a, violenta e opressora integram esse esquema de vigilância político extremamente autoritário e invasivo, onde qualquer tipo de pensamento crítico é punido com severidade e a ausência de qualquer tipo de liberdade ou privacidade são o mecanismo de continuidade do governo e manutenção do poder.
“A massa mantém a marca, a marca mantém a mídia e a mídia controla a massa”
Em termos de vigilância por câmeras, o nome Big Brother vem a calhar para o reality show. Na verdade, talvez seja a analogia mais adequada ao programa, se fizermos uma análise rápida. Mas, se olharmos com um pouco mais de profundidade, podemos perceber que o formato do programa se assemelha muito a história contada pelo romance, mas está longe da crítica social que o livro apresenta. A valorização da fama instantânea, dos conflitos e emoções humanas da forma mais superficial possível são reflexos de uma sociedade esvaziada de sentido, de valores éticos e morais, que cultua a superficialidade das relações e valoriza as aparências, manipulada pelos interesses de poucos que disseminam esses valores como forma de continuidade de seu poder através da mídia. Assim, a manipulação dos “saberes sociais” e o emburrecimento em massa da população como projeto de governo reflete, e muito, os motivos do sucesso do estrondoso do programa no Brasil e em tantos outros países.
Olhar espiritualizado: paralelo entre o budismo e o Big Brother
Poderíamos escolher qualquer religião para confrontar com os valores que sustentam o sucesso do Big Brother, entretanto, nenhuma se opõem tão fortemente em termos de valores e filosofia quanto o budismo, especialmente no que se refere a profundidade do ser e de pensamento crítico e elevado que a doutrina apresenta.
A entrevista da Monja Coen para o programa Sala de Visita da Livraria Cultura trata um pouco desta questão. Monja Coen é uma monja zen budista brasileira, que foi repórter em diversos jornais do Brasil e é conhecida por fazer palestras, diálogos inter-religiosos e por ser a autora de diversos livros. Como monja zen budista, ela expressa uma opinião valiosíssima sobre a banalidade e superficialidade contida no programa, especialmente sob a ótica budista.
Ela chama a atenção para o fato de que a leitura e a intelectualidade não são valorizadas pelo programa e seus participantes, fruto da criação midiática que nos transforma em uma ”ralé” simples e vazia intelectualmente, sem nenhum tipo de reflexão ou pensamento crítico. A quem interessa isso? É a pergunta que ela faz. A quem interessa que as pessoas não raciocinem, não questionem e não possam então tomar decisões por si mesmas?
“O conhecimento é em si mesmo um poder”
A expansão do conhecimento pela leitura de grandes autores não é estimulada, ficando totalmente ofuscada pelos outros termas humanos exibidos pelo programa, tão superficiais quanto seus participantes. As dimensões profundas da existência dão lugar ao comum, superficial, transitório e efêmero, como a fama, a beleza, festas e corpos sarados.
A busca de sentido pela reflexão e pensamento, as profundezas do eu exploradas pela leitura e práticas como a meditação não são, nem de longe, características não só do programa, mas dos participantes selecionados com rigor para compor o quadro de atrações. E, se assim não fosse, provavelmente o sucesso imenso do Big Brother estaria em perigo. Será que teríamos ávidos espectadores de o tema central do programa fosse o saber? O universo espiritual e o autoconhecimento?
Quem se conecta emocionalmente com o Big Brother e esses valores, o faz a nível físico e espiritual também. Quando um espectador se envolve sentimentalmente e mentalmente com os acontecimentos do programa, ele vincula seu espírito e sua aura às energias exatamente semelhantes às que estão pairando sobre a casa onde se reúnem os integrantes e ao que é apresentado pelo programa, trazendo para sua aura essa mesma vibração. Alimentam energias de conflito, de batalhas emocionais, fofocas, vaidade, relações irresponsáveis, traição, exclusão do outro, cultuando tudo o que vai na contramão do despertar espiritual, da expansão da consciência e da descoberta de Deus e do universo espiritual através do eu. Se para o universo material o programa é nocivo, para o espiritual é ainda maior o dano que a conexão com essas energias densas provoca.
Casos de intolerância
Não é de hoje que assistimos a intolerância racial, de gênero, classe ou religiosa aparece no programa. Ao longo dos quase 20 anos de existência, esses temas sempre surgiram entre as relações estabelecidas pelos participantes e os conflitos que elas geram. Conforme nossa cultura, sempre foram tratadas como piada, como humor e como totalmente naturais. Até mesmo agressões físicas direcionadas à mulheres pudemos acompanhar.
Mas será que algo mudou durante essas duas décadas? De forma otimista, tendo a pensar que sim, mesmo que a mudança tenha sido vagarosa. O que é dito na casa, dependendo do teor, até pode ser considerado piada e encontrar refúgio em uma parcela atrasada de brasileiros, mas não está mais passando incólume. Não. As leis estão mais rígidas e algumas mentes mais acordadas e conscientes, graças aos esforços de toda uma militância incansável. Extremos e excessos à parte, os avanços que a militância inteligente que certas minorias têm alcançado estão refletindo até mesmo no programa. Chegamos ao ponto de termos participantes expulsos devido a denúncias de abusos, além de um delegado que, nesta última edição, está exigindo entrar no programa para interrogar uma participante, acusada de intolerância racial e religiosa. Ela ri de suas atitudes e das diferenças, usando-as para sua própria diversão. Mas, o que ela nem imagina, é que está sendo observada pela lei e que terá que responder, perante a ela, por suas declarações nojentas e preconceituosas.
“Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”
Ao menos nesse sentido, o Big Brother tem nos ensinado uma lição: cada vez mais, seremos responsabilizados pelo nosso discurso. É é disso que se trata a democracia: temos, num regime democrático, a possibilidade de nos expressar da forma que quisermos. Temos voz, espaço e, na maioria das vezes, somos ouvidos, Porém, é também um pilar da democracia que sejamos responsabilizados pela nossa postura, quando nossa fala é criminosa e fere a liberdade e os direitos do outros.
Heróis da modernidade
É o vazio das próprias pessoas que faz com que elas preencham esse vazio com o interesse alheio, com a observação de narcisos fracos que vendem sua mediocridade para milhões de espectadores, minando suas dignidades com a falsa ideia de que, vencendo o programa, serão então dignos.
É o reino da mediocridade, da vaidade, da ignorância. Em um mundo onde não há tempo para o eu, para a leitura, para brincar com os filhos, é uma vergonha que encontremos tempo para, por mais de uma hora por dia durante 3 meses, observar cidadãos confinados não fazendo nada além de exibirem seus corpos e seus conflitos de convivência, exacerbados pelos efeitos do confinamento, privação familiar, de comida e de sono. Quem se dispõe a assistir ao Big Brother, certamente abdicou do pensamento crítico e busca uma forma de entretenimento rápido, frívolo e insignificante e possivelmente partilha daqueles valores.
Se ao menos durante esse tempo os espectadores trocassem o programa pela leitura e se recusassem a movimentar essa indústria, a esperança de um Brasil melhor se tornaria uma realidade mais próxima e as emissoras seriam obrigadas a reformular seu conteúdo, entregando um entretenimento com um pouco mais de qualidade e profundidade.
“Antigamente canonizávamos nossos heróis. O método moderno é vulgarizá-los”
Chegamos ao cúmulo de chamá-los de heróis. Existe absurdo maior em um país com tantas mazelas e heróis verdadeiros como o Brasil? Um insulto a toda uma nação, onde o verdadeiro herói é o trabalhador, o idoso obrigado a trabalhar, a mãe solteira periférica que sustenta sozinha os filhos, as domésticas, o negro marginalizado que luta pela vida, o bombeiro, a polícia, todos mal pagos e obrigados a abdicar de suas vidas para trazer o sustento familiar, na maioria das vezes insuficiente. Todos maltratados, excluídos mas que, apesar disso, fazem um esforço tremendo e injusto nesse país que adora a meritocracia. Mesmo quando está mais do que claro que nem todos partem do mesmo local ou tem as mesmas oportunidades. As mazelas a que estão submetidos é que fazem deles grandes heróis, muito distantes do heroísmo associado aos participantes do Big Brother.
Se vamos falar de heróis, também não podemos esquecer da história da humanidade e dos feitos e transformações que algumas personalidades nos presentearam. Se os confinados são heróis, como fica Mandela nesta equação? Martin Luther King? Madre Teresa de Calcutá? Ghandi? A lista é extensa e nem de longe teremos nela um participante do programa.
Se os participantes do Big Brother são os heróis atuais, prefiro os vilões e os fracassados.
Serão esses os heróis que queremos para nossos filhos?
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