Catimbó e os mestres encantados
“Jurema, minha Jurema, Jurema, Jurema minha, Jurema Preta, a senhora é a Rainha, ela é dona da Cidade, mas a chave é minha…” (cântico sagrado)
O Brasil é um país de espiritualidade elevada e que carrega em seu DNA uma ancestralidade espiritual incrível. A pluralidade cultural também é responsável pela enorme abertura à crenças totalmente diferentes, mas que, muitas vezes, se fundem.
Somente no Brasil é que encontramos por exemplo católicos que gostam de tomar um passe na casa espírita e pular sete ondas no ano novo, apesar do preconceito que algumas religiões de origem africana ainda enfrentam no país. Mesmo assim, somos de uma espiritualidade muito farta e esplêndida, local onde o despertar da consciência é muito favorecido e também berço de espíritos que vieram ajudar no despertar da humanidade como um todo.
Assim como o Brasil, o universo do Catimbó é amplo, complexo e profundo. Nascido no nordeste brasileiro, o rito começou entre os índios, recebeu influência das religiões de matriz africana e, até mesmo, do catolicismo popular, se transformando em um ritual mágico-religioso poderoso e uma manifestação cultural riquíssima. Alguns consideram o Catimbó o avô da Umbanda, pois influenciou muito a construção dessa religião.
Cura e iluminação espiritual são os objetivos do Catimbó. Dependendo de onde é cultuado encontramos diferentes práticas, mas comumente é uma reunião alegre e festiva em forma de roda. Com elementos de feitiçaria européia, pajelança e xamanismo, o Catimbó também abrange santos católicos, símbolos e entidades diferenciadas, porém, em essência, sua principal característica é sem dúvida o culto as ervas e a Jurema, uma árvore da família das leguminosas que floresce no agreste e na caatinga nordestina.
Os caminhos de Deus são muitos e a espiritualidade se manifesta da forma exata para atender e garantir uma vida digna à todos. Levando alívio e socorro para todos os lugares, durante muitos anos os mestres em vida e entidades espirituais do Catimbó foram o único apoio de todo um povo marginalizado, escravizado e muito sofrido. Proteção e especialmente a cura das doenças eram uma falta grande dessas pessoas, o que dá ao Catimbó um status tanto social quanto religioso e uma parcela muito bonita da história brasileira.
Iniciação e mestres
A iniciação no Catimbó é feita pela jura, ritual onde o iniciado se confirma como um discípulo da Jurema e após alguma experiência, recebe o cachimbo consagrado para seus trabalhos e evolução espiritual. Após sete anos o discípulo está pronto para passar pelo tombo, onde ele vai se confirmar como um mestre juremeiro. O tombo é um ritual muito significativo e importante, pelo qual os mestres do mundo espiritual também passaram para ganhar ciência. Ele consiste no oferecimento de alimentos e sacrifícios às correntes espirituais do iniciante, com o tombamento dos discípulos no pé da Jurema. Após caírem, entram em uma espécie de transe e quando acordam estão prontos para trabalhar.
Em termos de composição, o Catimbó é organizado de acordo com os papéis de cada um:
O responsável pela casa é o mestre principal, o mais poderoso; após ele temos os discípulos-mestres, que trabalham com seus cachimbos consagrados; a seguir estão os discípulos em desenvolvimento, sem o cachimbo. Os trabalhos com as entidades espirituais também é segmentado, onde cada um dos mestres é responsável por uma atividade específica de acordo com sua vibração energética. Assim, trabalhos de cura, abertura de caminhos, harmonia amorosa e resolução de conflitos por exemplo são realizados por mestres diferentes, que possuem uma energia com mais afinidade com a finalidade do trabalho.
As cidades da Jurema
O universo espiritual do Catimbó é chamado de Juremá, onde habitam os mestres da Jurema e seus subordinados. Assim, segundo a crença, as cidades da Jurema são espaços sagrados onde vivem os caboclos e caboclas, mestres e mestras, trunqueiros e outras entidades e divindades que orientam os catimbozeiros.
O Juremá é formado de aldeias, cidades e estados, com organizações hierárquicas bem definidas que e que envolvem todas as entidades catimbozeiras sob o comando de um ou até três Mestres.
“Cada aldeia tem 3 Mestres. Doze aldeias fazem um estado com 36 Mestres. No Estado há cidades, serras, florestas, rios. Quantos são os estados? 7 segundo uns: Vajucá, Tigre, Cadindé, Urubá, Juremal, Fundo do Mar e Josafá. Ou cinco ensinam outros: Vajucá, Juremal, Tanema, Urubá e Josafá.”
Simbologia e objetos sagrados
O Catimbó cultua ervas, a Jurema e santos católicos, utilizando também o caldeirão para rituais de magia e usa a defumação curar doenças. Tem óleos, água benta e outros objetos litúrgicos, mas vamos falar aqui dos mais importantes:
Cachimbo sagrado
A fumaça e o cachimbo detêm parte do segredo que os catimbozeiros chamam de “ciência”, aquilo que move o mundo e que está presente em tudo. É através da fumaça que o catimbozeiro alcança seus desejos, pois quando ele fuma o cachimbo, ela segue na direção do que é preciso ser solucionado levando com ela aquilo que é necessário para realizar os pedidos do catimbozeiro.
Maraca
Além do cachimbo, um ícone do Catimbó é a maraca. O chocalho indígena feito de cabaça entra em harmonia com o Ilú (tambor tradicional de Pernambuco) e juntos povoam sonoramente as celebrações dos encontros e rituais.
Príncipes e princesas
As princesas são vasilhas redondas de vidro ou de louça onde é preparada a bebida sagrada e onde, em ocasiões específicas, são oferecidos alimentos ou bebidas aos encantados. Os príncipes são taças ou copos, que normalmente estão cheios de água ou alguma bebida do agrado da entidade. Eles simbolizam a própria entidade espiritual e sua energia, e todo catimbozeiro tem ao menos um dedicado ao seu mestre em sua mesa.
Incorporação dos encantados
Catimbó pode ser considerado um culto de transe e possessão, onde os mestres se apoderam momentaneamente do corpo do catimbozeiro. São três linhas de trabalho diferentes: as viagens aos Mundos dos Encantos, a “manifestação” dos Mestres, caboclos, trunqueiros, reis, e encantados da Jurema e outras entidades como os pretos-velhos, exus e pomba-giras. Os espíritos de índios, caciques, pajés e caboclo são o fundamento principal da Jurema e a eles estão subordinadas todas as outras entidades.
Os mestres são neutros e podem operar tanto boas quanto más ações, ficando a critério da ética do catimbozeiro a decisão de manipular as energias para a finalidade que desejar. Estes seres espirituais seriam os responsáveis pela prescrição de ervas medicinais, banhos, rezas e aconselhamento que afastariam o mau-olhado e o infortúnio que os que procuram o Catimbó buscam espantar.
Bebida sagrada de Jurema
Da casca do tronco e raízes da Jurema se prepara uma bebida sagrada, que dá força aos “ encantados do outro mundo” e permite entrar em contato com o mundo espiritual.
Só a simbologia da árvore já é, em si, muito sagrada e antiga. De maneira geral, a árvore é o símbolo da morte, regeneração e das relações entre o céu e a terra, representada pelos galhos e raízes. Carvalho para os celtas, oliveiras para o Islã, muitas são as “árvores do mundo” e, dentre muitas, a Jurema é especial: aparece na Bíblia como a madeira do santuário de Javé, na lenda africana bambara e também no hinduísmo como matéria-prima da concha de Brahma. É, também a matéria da coroa de Cristo, o que dá um toque ainda mais especial para a árvore no Brasil, país de maioria católica.
As raízes e as cascas da Jurema utilizadas na preparação da bebida contém uma substância alucinógena que pode provocar a mudanças das percepções da mente, além de álcool, devido ao fato das entidades beberem cachaça, cerveja, vinho e cidra.
A beberagem da Jurema é um dos momentos mais sagrados do culto, um sacramento destinado aos catimbozeiros especialmente no momento de seu “tombo”, quando eles oferecem alimento às suas correntes espirituais. Assim, toda a mágica só acontece quando a bebida é tomada dentro do contexto ritualístico do Catimbó, não tendo efeito quando ingerida em circunstâncias não religiosas; ser arrebatado pelos espíritos dos mestres ou encantados não irá ocorrer fora da ritualística catimbozeira.
Saiba mais :