Espiritualidade sólida na modernidade líquida
Esse texto foi escrito com todo o cuidado e carinho por um autor convidado. O conteúdo é da sua responsabilidade, não refletindo, necessariamente, a opinião do WeMystic Brasil.
Modernidade líquida é um conceito social criado pelo sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, uma das maiores e mais ilustres figuras da história do pensamento humano. Para Bauman, a modernidade tem como característica essencial a fluidez e transformação, e, para caracterizar o período pós-moderno, ele criou o termo modernidade líquida. Tudo é volátil, as relações humanas não são mais tangíveis e a vida em conjunto, familiar, de casais, de grupos de amigos, de afinidades políticas e assim por diante, perde a consistência e ganha um caráter transitório. Com tanta informação e rapidez, nada que é sólido pode durar.
“Tudo que é sólido se desmancha no ar”
A modernidade líquida é um mundo sem forma, sem nenhuma certeza. O mundo que orientou a geração dos nossos pais e avós, já não existe da forma sólida que antes existia. Por exemplo, para ser bem-sucedido, bastava fazer uma faculdade. Quatro anos de estudo resultaram em um diploma que seria o responsável pelo sustento da família até a aposentadoria. Era uma garantia, uma certeza, que hoje já não existe. Não podemos mais parar de estudar após a universidade, nem achar que o diploma é garantia de sustento, embora sua importância ainda prevaleça frente ao “não estudo”.
Essa sociedade 100% conectada à internet desconhece a noção de individualidade e intimidade. É uma sociedade que institucionalizou a violação da privacidade como um estilo de vida, onde comunicamos onde estamos, o que fazemos, quem amamos, o que escolhemos vestir diariamente e, até mesmo, o que comemos. Informamos, crentes da extrema relevância dessa informação, se acordamos ou estamos indo dormir.
“As redes sociais são uma armadilha”
Valores deixaram de ser definidos. Todas as pessoas são especialistas: o acesso à informação está atomizado, mas, a formação, nem tanto. Isso tudo contribui para a falta de autoridades no conhecimento, a disseminação das fake news, boatos, coaching como uma profissão e influencer digital como uma posição de extrema relevância. No passado, pensávamos que o profissional do futuro estaria construindo carros que voam e foguetes para viagens espaciais, mas os youtubers estão aí todos os dias nos mostrando do que é feita a modernidade: aparência, falsa relevância, fama, conteúdo vazio e pouquíssimo estudo e embasamento.
E a espiritualidade? Como fica nesse cenário?
Mundo das facilidades instantâneas: psicologia positiva
A espiritualidade verdadeira sofre com a cultura moderna, especialmente com essa liquidez de valores. Ao mesmo tempo em que compartilhamos tudo, estamos nos tornando cada vez mais egoístas em relação ao outro, a dor do outro e as mazelas do mundo. Um reflexo disso são os discursos baseados na psicologia positiva, que, seguindo a ditadura da felicidade e o bem-estar enquanto uma escolha do ser, medem o sucesso através da política do esforço. Basta querer. Se você não deu certo, é porque não se esforçou.
“Viver entre uma multidão de valores, normas e estilos de vida em competição, sem uma garantia firme e confiável de estarmos certos é perigoso e cobra um alto preço psicológico”
Conforme o filósofo dinamarquês Svend Brinkmann, em entrevista para a Exame, autoajuda não traz sucesso e fazer coaching é mais perigoso do que parece. Parte da indústria da autoajuda só contribui para reforçar o problema que ela própria diz combater: a infelicidade causada pelo individualismo e pelo desinteresse em soluções coletivas. Quando as pessoas fracassam -o que acontece com qualquer um- elas se enxergam como as únicas responsáveis pela dor; se sentem culpadas por algo que não estava sob seu controle. Sem mencionar que autoajuda é um sintoma do individualismo exacerbado, parte do problema do mundo moderno. As pessoas se sentem desligadas umas das outras quando pensam que podem atingir seus objetivos por conta própria, se seguirem “passos para a felicidade e sucesso”.
Não há regras, não há receita de bolo e, como já citado antes, não controlamos todos os aspectos de nossa vida e nem da sociedade. Apresentar a felicidade e prosperidade como objetivos que dependem só do indivíduo é muito atraente, mas completamente falso e extremamente egoísta. Faz com que as pessoas pensem em termos individuais e não coletivos, o que não faz o menor sentido quando sabemos que nossos males e tristezas têm natureza política, portanto, os desafios precisariam ser pensados de forma social e coletiva, nunca individual. Somos responsáveis pelos demais, impactamos nas vidas alheias, pois, vivemos em sociedade, e as necessidades dos outros, a dor do outro, a diversidade do outro, deveria ter enorme importância para nós. E a autoajuda voltada para a realização imediatista dos desejos nos fecha para essa dimensão alheia, se distanciando totalmente do sentido da espiritualidade.
Fazer, superar adversidades, criar mecanismos para nossa realização são, obviamente, essenciais para a nossa felicidade e de quem está ao nosso redor. Sentar e lamentar a vida nunca levou ninguém a lugar algum, mas isso é muito diferente do nível tóxico que os discursos de autoajuda tem chegado. Nenhum treinamento pode substituir a autorreflexão e autoconhecimento verdadeiros, que jamais estarão presentes em workshops, pois são um processo longo de encontro com nosso verdadeiro eu e também com nossa origem espiritual. Querer mudar sua vida através de algumas horas de palestra é uma mentira típica da modernidade líquida, que faz sangrar a verdadeira espiritualidade.
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As fórmulas mágicas
Outro sintoma espiritual decorrente da modernidade líquida é a vontade de transformação sem esforço. Queremos uma vida transformada, mas não queremos trilhar o árduo caminho da mudança. Ao invés de estudar, refletir, buscar respostas que possam alterar nossa forma de pensar e, por consequência, nosso comportamento, recorremos a fórmulas mágicas: simpatias, magia, banhos milagrosos e orações poderosas. Não queremos ser contrariados, mas sim, satisfeitos. E rápido.
“Procure ser um homem de valor, em vez de ser um homem de sucesso”
Todas essas ferramentas são reais e funcionam. A oração tem mesmo um poder milagroso, especialmente quando vem do coração. Eu mesma acredito piamente no poder de todos esses instrumentos, que nos são dados por Deus para ultrapassarmos momentos mais difíceis e evoluirmos enquanto espíritos. Podemos e devemos recorrer a elas sempre que necessário, e o universo de possibilidades que elas oferecem é tão confortante quanto o próprio Deus. Mas, elas são um apoio, um remédio, um bálsamo, um mecanismo e não o meio em si. Com isso, quero dizer que, quando recorremos às saídas espirituais sem olhar para nós mesmos, ou seja, para dentro, para nossa alma, elas de nada adiantam. E às vezes, olhar para dentro e crescer é dolorido.
De nada adianta pedir riqueza, se não construímos os mecanismos para que a riqueza se concretize em nossa vida. Pedir saúde é inútil quando não mudamos os nossos hábitos alimentares. Pedir harmonia nas relações, especialmente as familiares, é um esforço em vão quando não estamos dispostos a compreender o outro e perdoar, perdoar e perdoar outra vez. Tudo depende muito mais de nossa maturidade emocional e espiritual do que da quantidade de vezes que oramos ou das simpatias que fazemos. Porém, quando transformamos nosso interior, quando vamos atrás das origens dos nossos problemas e nos colocamos à disposição de verdadeiras mudanças e autorreflexão, essas ferramentas são incríveis aceleradoras dos processos pelos quais passamos e nos ajudam a realizar o que buscamos.
Mas, vemos que nessa sociedade moderna a autorreflexão não está muito em voga. Pelo contrário. Pensamos em nós mesmos, mesmo quando travestismos nosso discurso de psicologia positiva e falamos em escolhas, esforço pessoal e desenvolvimento pessoal. Fala-se muito e servir, mas, no fundo, é à nós que buscamos servir. É em nós e somente em nós que centramos os nossos desejos e a nossa ação. Esquecemos que vivemos em comunidade e que nosso desenvolvimento e o alcance dos nossos objetivos e desejos esbarram nas questões sociais e coletivas. Enxergar o outro é enxergar a nós mesmos. Já a espiritualidade centrada na morte do ego, dos desejos, do perdão, do amor incondicional e da compreensão das fraquezas do outro, é o motor que move o desenvolvimento espiritual e nos coloca rumo à felicidade, se é que ela existe da forma que somos ensinados a buscá-la. E não há simpatia, oração, workshop, coaching ou reprogramação quântica que dê conta da mudança que esperamos, quando não transformamos verdadeiramente nosso interior. A transformação vem de dentro para fora e não o contrário.
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Manter a espiritualidade no mundo moderno
A transformação de alguns aspectos de nossa vida podem nos orientar ao fortalecimento da espiritualidade, dentro dessa sociedade líquida moderna.
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Abandono do pragmatismo
O primeiro passo é abandonar a rigidez do pensamento religioso e o pragmatismo. Isso não significa tirar dele o valor que ele certamente possui, pois todo e qualquer pensamento metafísico é uma grande chance de quebrar certos paradigmas e construir com mais solidez uma visão de mundo mais espiritualizada. Eu falo de abandonar dogmas, rejeitar a ideia de verdade absoluta que gira em torno da maior parte das religiões, que mandam para o inferno quem não compactua daquela fé. É preciso ler os textos sagrados de qualquer que seja a doutrina, com olhos espiritualizados para retirar deles os ensinamentos que eles trazem. Afinal, se existem, é com a permissão divina e a cada povo foi dada uma palavra de acordo com suas necessidades, pois Deus é perfeito, benevolente, misericordioso e inclusivo. Ele não deixa ninguém de fora e trata todos seus filhos com igualdade. Tudo, absolutamente tudo que é ensinado em termos espirituais, seja em qual religião for, pode ser aproveitado para nosso desenvolvimento e aproximação com o mundo divino.
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Validação do outro e das diferenças
Outro aspecto importante da espiritualidade nas sociedade atual que está se perdendo, é a percepção do outro como ser, onde existe a validação das diferenças das mais variadas naturezas. Inclusão, empatia e amor são as palavras de ordem para uma espiritualidade plena e verdadeira, num mundo individualizado, bélico e volátil. Aceitação também soma-se nessa equação, assim como o perdão. E perdoar é também perdoar a si mesmo, para que seja possível aprender com os erros. Dureza de sentimentos em nada tem a ver com espiritualidade.
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Rejeição do preconceito e valorização da tolerância
A aceitação do outro com todas as suas diferenças é primordial. Abandone e rejeite todo o tipo de preconceito: racial, de gênero, ideologia, classe social, religioso ou com relação à orientação sexual ou identidade. Mesmo que o outro represente uma agressão aos valores que você acredita serem verdadeiros e únicos, permita-se ter a humildade de perceber que você pode estar enganado. Ou, pelo menos, entenda que o outro deve ser livre para fazer suas próprias escolhas, e que, caso elas choquem com valores divinos, é o outro quem vai responder por seus atos perante Deus, não você. Aceitar o igual é muito fácil, difícil mesmo é amar o diferente. Esses valores são essenciais nesse mundo moderno onde o ódio e a exclusão do outro ganharam um espaço assustador.
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Vencer a preguiça intelectual
Deixe a preguiça de lado. Leia, estude, se informe. A internet é ótima para buscar informação, mas o verdadeiro conhecimento ainda está nos livros. A imagem tem seu valor, mas esse mundo do consumo de informação rápida e instantânea está prejudicando mortalmente a construção do conhecimento e, como consequência, o diálogo entre as pessoas. Estude, se informe, valorize o contraditório e se liberte. Preguiça de pensar é a mãe da ignorância e resulta nos equívocos e preconceitos que tiram tantas vidas em tempos atuais.
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Renuncie ao materialismo
Uma característica muito forte dessa sociedade líquida moderna que nos afasta dos valores espirituais é o materialismo e o consumo desenfreado. Somos induzidos a crer que, quanto mais temos, mais felizes seremos. Acabamos por colocar os bens materiais acima dos valores humanos, e assim caminhamos para a destruição do planeta e da vida humana na Terra, além de perpetuar a desigualdade e as mazelas sociais que jogam milhares de pessoas na completa miséria.
Valorize o espiritual em detrimento do material. Precisamos, sim, de certo conforto e vivemos na dimensão material, logo, não temos como nos livrar do que a materialidade oferece e que permite que a vida exista. Mas estamos longe de perceber que não precisamos de tantas coisas para viver e que o nosso valor não está nos bens que adquirimos. Devemos partilhar, ao invés de acumular.
“A felicidade é interior, não exterior; portanto, não depende do que temos e sim do que somos.”
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O prazer não é tudo
A sociedade atual, dita líquida por Bauman, construiu em torno de si uma ditadura da felicidade e da autorrealização a qualquer preço. Não só não é permitido sofrer, como devemos satisfazer nossos desejos através da vontade. Tudo é permitido, basta querer. O universo responde aos seus anseios, um discurso capilarizado e que é totalmente tóxico e muito infantilizado. Sim, você pode atrair para si situações e realizar desejos, mas desde que estejam em concordância com a vontade divina. Não é você quem manda e você não pode tudo. O universo não se subjuga à potência da positividade da sua vontade. Aliás, esse discurso é típico da modernidade, pois quem não quer ouvir que basta querer para ter? E fica fácil também justificar a desigualdade social e a pobreza, pois, nesta lógica, essas pessoas não teriam se esforçado o suficiente e não conseguiram abandonar suas crenças limitantes ao ponto de saírem da situação de miserabilidade na qual se encontram.
Nosso limite termina quando começa o limite do outro e não é tudo que é permitido, e nem tudo está ao nosso alcance. Aceitar isso, quando toda uma sociedade se movimenta no sentido oposto é muito difícil, mas é parte do despertar espiritual entender que outras leis governam o mundo além da Lei da Atração, que vem sendo mal interpretada por pessoas que ganham rios de dinheiro explorando os desejos e a carência alheia.
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