Coaching: do céu ao inferno
Esse texto foi escrito com todo o cuidado e carinho por um autor convidado. O conteúdo é da sua responsabilidade, não refletindo, necessariamente, a opinião do WeMystic Brasil.
Estamos vivendo uma época em que existe quase uma “epidemia” de coaching. A oferta se prolifera e basta uma pesquisa no Google para ver a variedade dos coachings que existem. Há opções para todos os gostos: quântico, prosperidade, oncológico, para mulheres, para homens, casamento, relacionamentos, emagrecimento, Tinder, games, para cães, espiritual, neurocoaching… A lista é extensa.
“O que eu penso, não muda nada além do meu pensamento, o que eu faço a partir disso, muda tudo!”
Todo mundo agora é coach. E todos querem fazer coaching. Faz sentido, pois, quando observamos a modernidade, vemos que existe uma grande demanda por respostas mágicas e imediatas, especialmente aquelas que colocam o poder humano no centro de tudo, criando um universo onde tudo é possível através da vontade. Aí mora o perigo e podemos ir do céu a inferno com esse fenômeno. Profissionais sem preparo, formação, ou referências dizem curar depressão, ansiedade, esquizofrenia e outros transtornos que só devem ser acompanhados por profissionais da saúde. Aí é que a coisa fica séria.
A História do coaching
O coaching nasceu no século XVI, na Hungria, quando habitantes de uma cidadezinha produziram carruagens com suspensão feita de molas de aço, desejadas devido ao conforto que ofereciam. Eram conhecidas como kocsi, e este termo ao ser pronunciado era entendido pelos ingleses como coach, nome que foi assimilado e usado até hoje. Avançando no tempo, o coaching se transformou no treinador esportivo, que desenvolve atletas em seu potencial máximo. Mais tarde é que a prática foi estendida ao mundo corporativo, onde profissionais especializados oferecem uma espécie de consultoria para grandes gestores. Nesse sentido, devo dizer, o coaching é extremamente eficaz. Ele ajuda um CEO, por exemplo, a estabelecer metas, organizar a carreira e vencer dificuldades específicas. Aqui, temos o céu. O problema começa quando o coaching se propõe a pensar a existência, curar e garantir prosperidade. O inferno se abre diante de nós quando o coaching se coloca como solução de vida, colocando a vontade como única responsável pelo desenrolar dos eventos da vida.
Clique Aqui: 4 filmes que vão te dar motivação para a vida
A infantilidade de pensar que se pode tudo
Pode ser uma ideia difícil de digerir, mas querer não é poder. Ninguém pode tudo, pois, essa noção fere os princípios espirituais mais básicos. Nunca o poder de atração e o “pensamento positivo”, será maior que o karma e os débitos que trazemos de vidas passadas e que acumulamos na encarnação atual. destaque Santos, pessoas perfeitas e evoluídas não estão na Terra e o objetivo da encarnação não é o sucesso pessoal, mas o aprendizado. A Terra é um planeta escola e, para que assim seja, existem leis divinas as quais estamos todos submetidos, e a Lei do Karma é uma delas. Ora, pense por um instante: faz sentido que pessoas antiéticas, por exemplo, possam conseguir o que desejam pelos simples fato de serem otimistas? Pense em um político legalzão. Ladrão, mas cheio de carisma e positividade, e que acumulou riqueza e destaque. Será que o otimismo desse indivíduo é mais poderoso que seus débitos? Será que pensar positivo é determinante para a nossa realização, ou existem leis divinas que regem o mundo e que independem da nossa vontade?
“Uma cultura da felicidade pode apenas gerar gente banal e medíocre”
Claro que o pensamento negativo vibra uma frequência nociva. O pessimismo exacerbado também é contra as leis divinas e nunca levou ninguém a lugar algum. Mas daí pensar que basta querer que todos os desejos serão atendidos é de uma infantilidade tremenda. Não há pensamento positivo que supere a programação da sua encarnação, o que significa que nem tudo que queremos nos está acessível. Nosso esforço e nossa vibração são, sem dúvida, parte integrante do que podemos conquistar e do quanto podemos expandir nosso potencial. Podemos muito, mas não tudo. E a realização vem através de atitudes voltadas ao próximo e para o crescimento, nunca de vibrações direcionadas aos desejos pessoais.
Essa falha que esse tipo de sistema mágico contém tem relação com a ideia de sucesso que fazemos. Consideramos sucesso a conquista de uma posição de na carreira e um certo acúmulo de bens materiais, que transferem respeito e dignidade ao indivíduo. Mas, na verdade, tem sucesso quem está realizado, e nem sempre essa conquista interior se dá por elementos externos a nós; há quem se realize através de uma vida muito simples e rica em valores. Quando a esmola é demais, o santo deve sempre desconfiar.
O inferno do coaching
“Não importa o que a vida fez de você, mas o que você faz com o que a vida fez de você”
Existem na internet perfis que usam o humor para expor o que existe de pior no coaching. O foco é nos charlatões, que usam o desespero e a carência das pessoas para dizer o que elas querem ouvir, vomitar uma série de frases motivacionais rasas e ganhar dinheiro. Chamam de “missão de vida”, se sentem poderosos e pensam que estão realizando um trabalho digníssimo.
Existe até coaching oncológico, para termos uma ideia da falta de limite de alguns. Imagine uma pessoa a beira da morte sendo aconselhada com frases motivacionais vazias por um profissional que passou longe da universidade, e, por isso, não tem a menor capacidade de oferecer qualquer ajuda. E os preços que cobrados são abusivos. A questão é simples: para tratar de casos graves como o câncer, ou você está embasado pela psicologia e estudou anos a mente humana, ou é mais digno pegar essa “vontade de ajudar” e fazer trabalho voluntário e levar conforto para quem está se despedindo da vida. Mas quem quer “ajudar” sem nada receber? Pouquíssimos. Sem a compensação financeira, a vontade de ajudar o próximo esmorece.
O perfil Coach nem é Gente do Instagram faz uma coisa interessantíssima, além dos memes hilários: o moderador entra em contato com coachs como se fosse paciente, pede informações sobre o serviço e descreve os problemas que está enfrentando. Porém, descreve sintomas de depressão, esquizofrenia, bipolaridade, passando um quadro de saúde mental grave. A seguir, pergunta se será curado. Em alguns casos o moderador chega a dizer “tenho pensamentos suicidas” e a resposta que chega é assustadora. Em 100% dos casos, esses “profissionais” garantem a cura. E quando questionados sobre sua formação, vemos que poucos fizeram uma faculdade, nem mesmo uma fora do universo da saúde. Grande parte nunca estudou coisa alguma além do curso de coaching.
É preocupante o perigo que as pessoas correm em mãos tão despreparadas. Se você sofre de depressão ou qualquer outro transtorno, o único caminho possível é fazer acompanhamento com um profissional da saúde e buscar, em paralelo, a espiritualidade e autoconhecimento.
A culpa do mundo do coaching
Quando o coaching coloca exclusivamente na vontade do indivíduo o sucesso, ele esbarra em questões sociais e outras tantas que não estão sobre o controle das pessoas. E, quando a pessoa não atinge a meta esperada, a culpa é dela. Ela não se esforçou o suficiente, não foi positiva o suficiente e se deixou vencer por “crenças limitantes”. E aí vem a culpa e a frustração. E com isso não estamos falando de não nos responsabilizar pelo que nos é possível fazer e alterar, pois, há muito que podemos e devemos fazer por nós.
Até certo ponto, somos senhores do nosso destino, mas não devemos confundir nossa capacidade de realização e superação com desejos que o universo atende através da vontade. O fracasso faz parte da vida e o coaching não ensina a lidar com essa faceta da existência, pelo contrário, se você pode tudo, quando algo não se realiza você não é bom o suficiente. Esse discurso ignora o karma e as diferenças sociais e econômicas. Ignora até mesmo Deus, pois trabalham a ideia de “seja feita sua vontade”.
Em um país que atravessa uma grave crise e tem milhões de desempregados, esse discurso é criminoso. Muitos estão passando por dificuldades porque perderam seu emprego para a crise, não porque não se esforçaram, não ressignificaram crenças limitantes e alteraram o mindset. E esse é o erro mais crasso do coaching: generalizar a cura e não levar em consideração a individualidade. Nem todos são iguais e partem do mesmo ponto, logo, não há receita de bolo. Se houvesse, certamente o mundo seria muito melhor.
Há coachs que invisibilizam causas importantíssimas como o racismo e a misoginia, chamando de “mimimi” e dizendo que pouco importa se você é negro ou branco, homem ou mulher. E sabemos que importa sim. Empoderar essas pessoas e ensiná-las a lidar e superar sua condição é completamente diferente de calar essas vozes e invisibilizar essas pautas. Novamente, não se trata de incentivar o comodismo e validar comportamentos que tendem a se esconder atrás das dificuldades e culpar o externo pelas falhas. Invalidar e minimizar esse sofrimento é um discurso que chega a ser criminoso e digno de punição exemplar.
O grande vencedor é o capitalismo
“Trabalhe enquanto eles dormem” é uma frase repetida à exaustão no mundo do coaching. Através dela, vemos que o coaching obedece à lógica do capital, porque coloca o sucesso como meta e prega a teologia do empreendedorismo e da prosperidade através da produtividade total.
Pensar a relação entre empregado e empregador, políticas públicas de acesso à educação e a precarização do trabalho, por exemplo, não são objetivos do coaching. Pelo contrário, ele reforça a ideia de que é preciso trabalhar até mais não poder para enriquecer e “chegar lá”. Observe que poucos profissionais têm um trabalho mais pesado que o de um pedreiro e eu nunca vi nenhum deles rico, especialmente no Brasil. Infelizmente eles dificilmente chegarão a desfrutar do mesmo conforto de quem usa um terno, chega às 10h no escritório, sai às 17h e nas vésperas de feriado sequer se apresenta. Essas pessoas estudaram e merecem os salários altíssimos que recebem. O problema é um motorista de aplicativo receber um salário de fome, um pedreiro mal ganhar para se sustentar e uma doméstica não ter condições de ter uma moradia digna. Gosto da ideia que surgiu na internet para exemplificar essa linha de pensamento, sobre uma ideia pra um reality show: 6 coachs de empreendedorismo colocados na periferia, pra morar em um barraco, cuidar de 4 filhos, trabalhar 10 horas por dia e ganhar um salário mínimo. O que fizer 1 milhão primeiro, ganha. Será que conseguiriam vibrar quanticamente, alterar o DNA da prosperidade e atrair o sucesso? Eles caras soam como as influencers que falam de aceitação com 300 procedimentos estéticos na cara e muitas plásticas.
“Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso. Amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade”
Felizmente em alguns países a realidade é menos cruel e há mais dignidade no trabalho, nos salários e na divisão de renda em geral. E curiosamente o coaching não tem a mesma força que encontra no Brasil, um dos países com a maior desigualdade social do mundo. Gostamos da exceção da regra, do menino pobre que estudou na folha de papel de pão e chegou à universidade. Mas as regras não são feitas de exceções e, para cada menino segurando uma folha de papel de pão, passando fome e sem acesso à educação, há milhares de outros que não vão conseguir. E ao invés de olharmos esse tipo de exemplo para tentar reverter esse sistema cruel que tritura as pessoas como carne, escolhemos manter o status quo e vangloriar a meritocracia. Essa é a lógica do coaching e agora sabemos a quem ela serve.
Clique Aqui: Movimentos sociais e espiritualidade: existe alguma relação?
O egoísmo do pensamento positivo
Por fim, cabe a reflexão sobre a natureza do pensamento positivo. É inegável que ele serve somente ao indivíduo, e, nesse mundo do coaching está voltado para o sucesso profissional e financeiro. Vibre positivo, pensando unicamente em você e o céu vai se abrir para você porque você pode e nasceu para ser feliz. Ora, nada mais denso, egoísta, material e contrário a espiritualidade elevada do que esse pensamento individualista.
Vibrar pela transformação do mundo, pelos aflitos, pela elevação consciencial de todos no discurso da ditadura do pensamento positivo dão lugar ao eu, ao meu desejo, às minhas aflições e minha felicidade. Um mindset bem mundano e de baixíssima vibração.
“Uma vida não analisada não é digna de ser vivida”
Infelizmente, essa é a realidade dos serviços prestados pela maior parte desses profissionais e dos cursos caríssimos que eles oferecem. Se o coaching não for voltado para a carreira, melhor investir seu dinheiro em psicólogos, espiritualidade e autoconhecimento. Esses cursos sim valem a pena e mergulham a pessoa no único e verdadeiro conhecimento capaz de transformar.
Saiba mais :