Será que o bom samaritano é, na verdade, ateu?
Para a infelicidade dos crentes, os ateus vem crescendo ao longo dos anos e diversificando o perfil: antes, a maioria era de homens, brancos, de classe media ou classe media alta. A maioria dos ateus ainda responde a este padrão, mas cada vez mais estamos vendo esse esteriótipo mudar.
Mas, o que significa ser ateu? Significa acreditar apenas na materialidade. Para um ateu, não há a possibilidade de existir Deus, vida após a morte, espíritos ou qualquer explicação metafísica para a vida. Não aceitam que o corpo seja constituído de energias e que ele troque vibrações com o mundo e outras pessoas. Rejeitam o que é místico e não acreditam em terapias alternativas.
Aliás, ciência é a única crença do ateu; é o conjunto de ideias onde ele se baseia, de onde tira suas certezas e constrói seu mundo, suas explicações, incluindo a gênese humana. Big Bang e evolução darwiniana e seleção natural são a única possibilidade para um ateu. Mas vale lembrar que o ateu é diferente do gnóstico: o ateu não acredita em nada místico, enquanto o gnóstico “não se importa”. Se houver um Deus, tá tudo bem. Se não, tá tudo bem também e a vida segue cheia de sentido. O ateu tem um posicionamento claro, pois refletiu minimamente sobre sua condição e tomou uma posição ideológica a respeito da origem do mundo.
O fato é que o ateísmo está em crescimento, enquanto que a religião se encontra em declínio. Mas declínio nem de longe quer dizer “fim”, certo? Estamos vendo cada vez mais países europeus com maioria atéia. A Suécia é um exemplo, onde 85% dos cidadãos se declaram ateus. Isso porque alguns governos têm promovido fortemente o ateísmo e outros condenam com veemência a descrença em alguma religião, especialmente quando possuem uma religião oficial.
Mas e no futuro, seremos todos ateus? Será que o ateu é melhor que aquele que tem fé? Seria, o bom samaritano, ateu?
A religião vai desaparecer?
Provavelmente não. Muitos são os motivos para acreditarmos que, apesar do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, a crença religiosa talvez nunca seja banida da vida humana.
Apesar de que um número cada vez maior de pessoas vêm se assumindo descrentes de Deus e um plano divino, a religião se mantém firme como nunca. A crença religiosa oferece uma segurança emocional que não enfraquece. Porém, estudos mostram que a crença está muito ligada a segurança, e que países mais desenvolvidos que oferecem aos cidadãos uma vida estável e com assistência às necessidades básicas como moradia, saúde, trabalho e segurança, tendem a um nível de ateísmo mais significativo. Mas, ainda assim, os números não são absolutos e uma parcela de belivers ainda persiste, apesar das boas condições de vida.
Acadêmicos ainda estão tentando destrinchar os fatores que levam um indivíduo ou uma nação ao ateísmo, mas alguns pontos já estão claros além da questão da segurança e estabilidade: o sofrimento. As dificuldades e a dor estimulam a religiosidade. A crença espiritual e a religião são o único sistema de crenças e ideais que dão um sentido ao sofrimento, oferecem explicações e mecanismos para lidar com as adversidades e a dor. E o mundo é feito de dor, perdas e frustrações que só encontram consolo na crença. Aliás, é através da crença aliada ao sofrimento que podemos, mesmo que lentamente, crescer enquanto humanidade. A ciência sem Deus não leva a evolução moral, ao contrário, historicamente tem nos levado à destruição. Basta olhar para um passado recente, onde toda uma comunidade científica se uniu para criar o pior artefato de destruição em massa já visto na história humana: a bomba atômica. E a fala do cientista diretor desse projeto, conhecido como Projeto Manhattan, já diz muita coisa sobre os mecanismos que levaram essas pessoas a empreender seu tempo e sua inteligência nesse ato terrível:
“Agora eu me tornei a Morte, o destruidor de mundos.”
Além da segurança e do sofrimento, o fato de que as pessoas que são mais religiosas tendem a ter mais filhos também contribui para a perpetuação da crença metafísica. E as crianças seguem o exemplo dos pais (alguma vezes não tem opção) em sua decisão sobre a religião, tornando ainda mais difícil um mundo sem a crença. Por todos esses motivos psicológicos, neurológicos, históricos, culturais e logísticos, temos certeza que a religião nunca vai desaparecer.
Ateísmo é a saída mais fácil?
Segunda o filósofo Luiz Felipe Pondé, sim. Ser ateu não exige nenhum esforço e, perante as verdades do mundo que os olhos podem atestar, o ateísmo é cognitivamente a saída mais fácil. Ele não carrega nenhum visão sofisticada sobre o mundo e não exige nenhuma reflexão mais profunda sobre a existência.
“Quando criança conclui : se Deus, como todo mundo me dizia, era bom, por que eu não era o cara mais fofo do mundo ? Decidi que Deus não existia. Ou não era bom. O ateísmo é uma conclusão óbvia, não há nenhuma grande inteligência nisso. Qualquer golfinho consegue ser ateu”
Pondé brinca que virou ateu os 8 anos, pois era muito fácil perceber que esse Deus que a humanidade acredita não aparece, não responde, não produz provas e não confirma sua existência, além de não refletir sua bondade no mundo; o mundo é mau, feito de sofrimento e que não parece haver nele um roteiro escrito por um Deus bom, onde o bem vencerá no final. Entretanto, ele considera a concepção de mundo judaico-cristã muito sofisticada, diz que gostaria muito que a nossa existência pudesse ser contada a partir desse ponto de vista e se diz apaixonado pela literatura mística.
Sem dúvida a aceitação dos acontecimentos e da dor que a confiança incondicional em Deus exige, não é algo simples de se atingir neste mundo de tanta dor. Aplacar a revolta frente aos acontecimentos que parecem injustos e buscar o crescimento através do sofrimento não é um jogo intelectual fácil de encarar e muitas vezes parece mais fácil crer na aleatoriedade da vida e suas fatalidades do que na ideias de que tudo acontece por uma razão.
Os que acreditam são melhores pessoas que os ateus?
Segundo alguns estudos, não. Trata-se, na verdade, do contrário. Apesar de que a maior parte dos ensinamentos religiosos falam sobre compaixão, generosidade, aceitação e sentimentos, na prática existe uma confusão com relação à estas ideias e o julgamento do próximo em relação as suas atitudes e crenças impede que os preceitos religiosos do amor incondicional seja praticado. Parece que o bom samaritano é, na verdade, ateu.
Ser religioso ou ateu não faz as pessoas melhores, mas parece condicionar a compreensão da generosidade e o altruísmo com que agem com desconhecidos. Basicamente, além da questão do julgamento em relação ao outro, parece que o problema está na certeza que os religiosos possuem de que, só pelo fato de serem religiosos, são mais altruístas e solidários e que realizam toda a caridade que precisam, mesmo quando essa caridade está restrita à sua comunidades religiosa. Se sentem, de alguma forma, superiores. Assim mostrou um dos últimos estudos sobre o tema, da Universidade de Chicago, realizado com crianças de 5 a 12 anos em países muito diferentes ideologicamente, especialmente em relação a religião: Canadá, EUA, Jordânia, Turquia, África do Sul e China foram escolhidos para a avaliação da empatia e altruísmo em relação a crença religiosa. Os pesquisadores concluíram que os estudantes que não recebem valores religiosos em suas famílias são notavelmente mais generosos em relação ao outro, tendo uma tendência maior a empatia e a compartilhar seu espaço e suas coisas com outras crianças.
Além disso, os pesquisadores também utilizaram a opinião dos pais como ponto contraditório para as conclusões a que chegaram: questionaram os pais se seus filhos eram mais ou menos generosos, para comparar com a realidade que se delineou nos estudo. Após avaliarem o posicionamento dos pais, perceberam que os pais e mães mais religiosos tem a certeza de estarem criando filhos mais solidários e altruístas. Outra descoberta importante é que a religiosidade faz com que as crianças sejam mais severas na hora de condenar os outros, evidenciando que a religiosidade está diretamente relacionada com a intolerância e atitudes punitivas contra terceiros.
“Ateus podem fazer maldades, mas não fazem maldades em nome do ateísmo”
Sim, a história humana nos mostra que a crença religiosa nunca nos impediu de fazer o mau. Claro que sabemos que matamos por deus, sem deus, contra deus e a favor de deus. Mas as guerras santas são sem dúvida as mais mortais e também as que mais ceifaram vidas até hoje. Temos aí a Idade Média que não nos deixa mentir: mil anos, exatamente mil anos de trevas religiosas, onde a igreja católica derramou sangue humano sem nenhum pudor ou vergonha, em nome de Deus. Talvez, se nosso passado fosse ateu, a idade média teria sido menos terrível.
A religião e a empatia
O sociólogo de Stanford Robb Willer publicou um estudo que mostra que a empatia está mais presente entre os ateus do que religiosos. A pesquisa de Willer tornou evidente o pensamento de que os ateus não fazem julgamentos sobre quem podem ou não ajudar, pois não tem uma crença, reputação ou a desculpa do castigo e vontade divina para se esconder atrás, enquanto as mazelas do mundo maltratam as pessoas. Para eles, a conexão emocional que se estabelece entre os seres humanos já é suficiente para que eles se sintam impelidos a socorrer um desconhecido que precise de ajuda.
Já os mais religiosos passam por etapas de julgamento para saber se aquele outro merece ou não ser ajudado e concluir se vão ou não fazer alguma coisa. Questões como dogma, a identidade de grupo e a reputação falam mais alto do que o grau de necessidade que o outro possa apresentar ou a gravidade da situação que se encontre envolvido. Não é a situação em si que os faz decidir, mas sim o que pensam sobre a situação segundo seus preceitos religiosos.
“O mais perigoso tipo de ateísmo não é o ateísmo teórico, mas o ateísmo prático. Este é o mais perigoso tipo. E o mundo, e mesmo a igreja, está repleta de pessoas que prestam culto com os lábios em lugar de um culto com a vida.”
Uma desculpa também muito usada é a vontade de Deus, para alguns, karma. Pensam que não devem ajudar os mais necessitados, pois se eles estão naquela situação, é pela vontade de Deus. Enfrentam provavelmente um castigo, e interferir seria muito ruim. Combinam esse absurdo com a política da meritocracia, alegando que as pessoas devem se esforçar para saírem de determinadas situações e que devemos ensinar a pescar, jamais dar o peixe. Especialmente no Brasil, um país que adora caridade mas odeia justiça social.
Ora, dar o peixe não foi justamente o que fez Jesus? Eu, sempre que posso, dou o peixe. Dou o meu peixe se necessário, sempre que alguém em apuros ou com fome cruza o meu caminho. Não há condição racial, social, ideológica, sexual ou política que me convença que eu posso colocar a minha cabeça no travesseiro tranquilamente enquanto outro sofre.
Religião não é uma garantia para a moralidade. Religião e moralidade são duas coisas diferentes, assim como são a religiosidade e a espiritualidade.
Na parábola de Jesus descrita por Lucas nos Evangelhos, era o sacerdote a não se aproximar do necessitado e somente o samaritano parou para ajudá-lo. Muito provavelmente, o bom samaritano moderno é ateu.
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